AKIRA
VICTOR MELONI
Akira acordou sobressaltado com o barulho esmagador a sair da garganta enfurecida daquela tempestade, ao que parecia, imbuída em animosidade. Através da suntuosa janela, podia observar as estrias fulgidas que cortavam impiedosamente, e irregularmente espaçadas, o céu tomado por noite de densidade atroz. Via-se o clarão retumbante, e logo em seguida o estrépito impávido da colossal força da natureza. Neste ínterim de claridade esplendida, fornecida pela manifestação do raio vívido, ele podia divisar um horizonte privilegiado da urbe, com seus singulares contornos arquitetônicos. A imensa janela de vidro, que tomava toda parede norte de seu quarto, lhe garantia o espetáculo. Somava-se à isto, seu cômodo estar muito bem encaixado no quadringentésimo andar da mais alta edificação da cidade que lhe acolhia há muito. Seu coração ainda reclamava aos pulos, pois susto igual há tempos não lhe cabia lembrar. As horas indicavam que a madrugada acabava de reclamar seu lugar. A torrente se chocava com irascível desmedida ao encontro do grosso vidro, deixando nossa personagem refém imperioso das hipóteses sobre o futuro que aquela grandeza espelharia. Algum tempo, ao que parece o suficiente, se passou até que Akira fosse naturalmente descendo aos porões inescapáveis do férreo braço de Morfeu. É cediço que a exagerada maioria das espécies contraiu dívida com esta contumaz divindade, e a pagam com alguns momentos de suas idiossincráticas existências. Estava prestes a entregar o soldo quando da interrupção diligente, sem flertes com o natural, da água que caía aos cântaros. Sugeriu estar refém de conselhos oníricos, naqueles instantes onde o sensato esmaece às necessárias lucubrações do inconsciente apodítico. Admitiu, entretanto, que o assalto empregado à alguns dos seus sentidos eram risonhos e límpidos demais para estar preso ao porão de sua mente (isto, caro leitor, não assenta veracidade iniludível ao que se sucedeu, todavia). A saber, audição, visão e olfato. Impreterivelmente nesta ordem. O parapeito era o palco do sibilino espetáculo, onde uma espécie de conúbio soez medrava.
- Inolem, meu obtuso anátema, veja o que temos aqui!
- Sim, mestre, posso enxergá-lo até mesmo com as pálpebras encerradas em furiosa força.
- É de sua vil natureza desdita refocilar-se com estes pusilânimes beócios!
- Então, meu senhor, é dado a seu humilde fâmulo a permissão de por termo à vontade que açoita pujantemente as entranhas?
- Recalcitar é necessário, por enquanto, criatura embebida em bastardia!
- Mas, mestre, dói tanto...
- Cala-te, fátuo!
O firmamento, agora tomado por um arrebol iníquo, moldurava as duas figuras que obsedavam a atenção de Akira. O maior fitava-o com olhos ominosos, mergulhados numa orexia pungente. O outro parecia conversar com a edaz púrpura que estava, sem óbice, a entenebrecer a abóbada que definhava. Um odor draconiano fustigou Akira lançando-o num inevitável abismo de tormentos. Recendia, inequivocamente, dos dois abantesmas. Com a cauda a serpentear elegantemente, o menor, evidentemente sobranceiro em sua postura, mas igualmente torpe, encara nossa quebrantada personagem, entregando a febril mensagem, cravada em suas órbitas repletas de fleuma:
- Inolem, sinto seu retorno. Não podemos mais obliterar a causa de nossa lacônica parada. Ela, bem sabe, não procrastina espólio. Então, será nosso alimento tenazmente disputado. Um renhido de fescenino êxtase!
- Meu lorde, deixe-me iniciar o espojo! Deputa-me de tal cruciante provação!
- Seja rápido em seu prurido, meu sequaz envilecido. Toma-te o tempo que sabes necessário. Também recresce em mim a renitente vontade, pois sequiosa dor barafusta-me, também, as entranhas!
Akira ouve o estrilar do vidro que se parte em vários pedaços, alguns a ferir-lhe a face tomada pelo mais imperscrutável terror. O maior salta sobre seu corpo, já enlanguescido pelo medo estreme, em estenia incognoscível. A dor lancinante opugna-o numa redundância cruelmente difusa. Akira ainda consegue divisar o semblante abjeto da pequena figura cruenta que se aproxima logo atrás, adiantando-se com sôfrega ansiedade, e a saliva a escorrer-lhe do sorriso no qual abundam dentes pungitivos.
Akira acorda em sobressalto, tenta gritar, mas uma sensação aguda, torturante, lhe acomete. O gigantesco vidro da janela norte está em pedaços. A água entra em profusão, assaltando-lhe o corpo, misturando-se ao denso e negro volume que deixa seu ventre em reentrância encarnada. Sua boca. Está sozinho, misturado à escuridão molhada e pegajosa. Está sozinho, agora. A dor em brasas avisa que não protelará mais.
_____________________________________________
MEL VERMELHO
Afonso Luiz Pereira
Afonso Luiz Pereira
Tu aí que me olhas... é... tu mesmo, com esta cara expressando repugnância. Achas que estou assim, deste jeito, por que eu quero? Não senhor! Dizem os mais velhos que antigamente ser vampiro tinha lá o seu “glamour”. Dizem que a verdadeira aparência de um vampiro se escondia por detrás de uma excelente e sedutora estampa. Tudo sustentado, é claro, pelo sangue vermelho e apetitoso dos incautos da noite. Mas agora, olhando para os escombros da cidade lá embaixo, não vislumbro absolutamente nada do que me contaram das antigas histórias. Nunca tive o prazer de beber sangue vermelho e consistente... até hoje!!!
Quero te contar, em poucas palavras, o que me acontece. Quero te explicar, antes que eu abandone este mundo nojento, o que me levou a subir este velho edifício na tentativa de buscar abrigo justamente aqui. Gosto muito deste lugar. É o meu local predileto de meditação e, infelizmente, por ironia do destino, torna-se-á, esta marquise, meu cadafalso: o instrumento inglório de minha execução! Sendo tu, uma criatura alienígena totalmente isenta da deterioração execrável deste planeta, podeis estar se perguntando: o mundo do jeito que está, tomado por vampiros, não é melhor para você? E aí eu te respondo: é claro que não! O mundo infestado pela população de vampiros, onde “os humanos” de sangue vermelho e quente contam-se nos dedos de uma das mãos, é uma merda! Sim, senhor! Um grande e enorme amontoado de bosta!
Sem mais delongas, preciso te explicar como os fatos se sucederam até o presente momento porque já vejo no teu semblante a tua impaciência. Tu estás com pressa também por averiguar as artérias entupidas desta Necrópole. Não há muito o que ver, eu te garanto! Somos o que somos: criaturas em decadência que se entredevoram sem o prazer de antes. Não vou me ater em como foi que a população se transformou no que somos hoje, porém ofereço-te um vislumbre do que se pretende fazer para se retornar aos velhos e bons tempos.
Meu nome é Gorki, um vampirinho qualquer, sem eira nem beira, a quem foi incumbido de salvaguardar quatro “pessoas” de sangue quente. O clã a qual pertenço vê como única saída para a nossa salvação o estímulo da reprodução humana. Eles, “os humanos”, precisam se multiplicar novamente para que venham a ter no futuro a mesma serventia que tinham para nós no passado: vasilhames acondicionados do mais puro mel vermelho! O líquido precioso e adocicado que nos enche de prazer, nos revigora e nos embeleza como verdadeiros príncipes, costumam dizer os vampiros mestres. Sem eles, “os de sangue vermelho e quente”, estamos condenados a uma existência medíocre e sofrida, absorvendo migalhas que se escondem nos esgotos... uhg... ratos são horríveis. Quando eles nos faltam, os roedores, somos obrigados a sugar os companheiros mais fragilizados, mas nem de longe, dizem os mais velhos, o líquido espesso, escuro e frio que corre em nossas veias se compara ao vermelho morno de outrora.
Mas deixe-me continuar... pois bem, Os Arkons, um clã que pouco se importa com o nosso destino, uma vez que, se nada for feito, iremos nos destroçar mutuamente até que o último fique de pé, descobriu estes raros espécimes humanos escondidos nos recônditos mais profundos de um velho bunker antinuclear. Os membros mais fortes de meu clã, os Dracônius, guerreiros de boa cepa, muitos deles vampiros experientes de 200, 300 anos de idade, decidiram proteger os casais de “humanos” para serem levados à outra cidade, onde se lhes ofereceriam condições tranqüilas de acasalamento. A produção, como tu deves bem saber, é lenta, porém temos a longevidade dos anos a nosso favor. O que nos falta é paciência para esperar os frutos deste investimento. Delegaram-me, portanto, a missão de protegê-los com a minha própria vida, se preciso fosse, enquanto a luta entre as duas facções estivesse em andamento.
Os quatro “humanos” foram acorrentados à parede. Ficamos protegidos numa das salas do abrigo subterrâneo. Nem sei direito como tudo foi desembocar para o incidente que me condenou. A mulher mais nova era linda, sabe? No entanto não foi a beleza física dela que me atraiu. Não! Não foi não. Foi uma sensação que nunca havia sentido antes até porque, cumpre registrar, também nunca havia ficado perto de uma criatura superior de sangue quente. E posso te garantir: foi a experiência mais inebriante que tive em toda a minha vida. Tu podes até não acreditar, mas segui os conselhos do velho Iago, o mestre vampiro-mor: “fique longe deles e não os olhe demoradamente”.
E assim o fiz.
Desviei os olhos deles o tempo todo, apenas ouvindo a ladainha das duas mulheres amedrontadas. De início, nos primeiros minutos, nada senti, mas à medida que o barulho do embate lá fora ia diminuindo, um cheiro irresistível e inefável começou a impregnar o ar! Huuumm... o que era aquilo? Minha boca, de repente, encheu-se d’água, minha língua, enegrecida pelo gosto dos ratos pestilentos, começou a estalar incontinenti, meu estômago revirou-se agitado. Acredite! Toda a estrutura minguada das carnes e ossos que me sustentam vibraram intermitente no compasso da batida do coração da “humana” mais próxima de mim. Voltei-me hipnotizado para ela.
E o que vi me deixou atônito, quase sem ar!
O rosto, os braços, as pernas, o pescoço, partes do corpo daquela mulher, não cobertas pela roupa desbotada, ganharam uma tonalidade bem mais clara e transparente! Luminosa eu diria! Sim! Luminosa! Como se... como se... talvez a descrição não seja a mais apropriada... bem... como se a criatura tivesse uma lâmpada interna acesa dentro de si! Pude ver com clareza, tenhas certeza disso, destacando-se na luminescência da pele, as centenas e centenas de ramificações que compunham a rede de veias por onde fluíam o tal líquido precioso de que tanto ouvira falar: o puro mel vermelho! Sim! Te afirmo e não faço meias palavras! Eu podia vê-lo fluindo graciosamente dentro daquela fêmea. Fico emocionado só de falar! Pela primeira vez na vida, porque sou jovem e já nasci vampiro, pude presenciar semelhante fenômeno. Tenho certeza que esta falta de experiência selou meu destino.
“Os de sangue quente” perceberam o meu estado de ebulição. Começaram a se agitar tentando se desvencilhar das correntes. Tolos! A mulher a quem encarava sem perder o foco expressava pânico em seus olhos arregalados quando percebeu que a baba do desejo me escorria abundante pelos cantos da boca. Quis impressioná-la. Arreganhei selvagemmente os meus dentes pontiagudos, sentindo-os projetarem-se de forma pouco comum. Emiti meu urro de guerra! Ela saltou contra a parede assustada. As pernas lhe faltaram e ajoelhou-se implorando pela vida. Foi engraçado ( rs, rs, rs ). Não senti pena, nem remorso. Senti fome. Muita fome.
E ataquei!
Sempre soube que um dia eu me saciaria do mel vermelho. Muitas vezes, aqui mesmo, nesta marquise, folheei antigas revistas onde via imagens de vampiros charmosos sugando o pescoço de lindas mulheres entregues docemente aos seus encantos. Ficava sonhando, sabe? Ficava imaginando degustar vagarosamente aquele momento. No entanto, devo reconhecer que não fui nem um pouco delicado com as minhas primeiras vítimas “humanas”. O companheiro dela quis protegê-la jogando-se de encontro a mim. Não tomei conhecimento! Minhas garras afiadas cortaram-lhe a garganta de um único golpe. Ele cambaleou para trás alguns passos e desabou no piso encardido do quarto. Tentou desesperadamente estancar a hemorragia. Imbecil! O cheiro e a visão do sangue avermelhado invadiu as minhas narinas de forma avassaladora. Destruiu a minha razão! Investi minhas necessidades em cima da mulher. O terror dela foi tanto que não chegou a gritar. As cenas artísticas de um vampiro charmoso sugando a presa nem me passaram pela cabeça. Não. Foi uma bocada só! Firme! Certeira! Enfiei todos os meus dentes na carne macia e suculenta, apertei e retirei um naco do pescoço dela cuspindo-o em seguida para o lado. A carótida espirrou o mel vermelho a metros de distância e abocanhei o ferimento novamente bebendo tudo em fartos goles pulsantes.
O gosto do mel vermelho? Humm... Tu não tens a menor noção. Foi indescritível. Ficaria horas e horas aqui falando sobre o prazer que percorreu todo o meu corpo.
E tu pensas que me contentei apenas com a mulher? Não! Queria mais, apesar de estar saciado! Queria experimentar o sangue dos outros para ver se o gosto e a textura mudava de um corpo para o outro. Como te disse: perdi completamente a razão! Matei todos!
Assim que me dei conta da besteira que havia feito sabia que estava condenado. “Os de sangue quente” são raríssimos de encontrar. Tanto isto é verdade que, apesar dos parcos 25 anos que tenho, nunca vira um deles pessoalmente. Por isso, não pensei duas vezes em sair rapidamente do abrigo nuclear e fugir da cidade que tanto gosto. Quando cheguei à superfície para ganhar a direção da fuga, o combate mortal entre os clãs se dava próximo à entrada do abrigo. O mel vermelho que me encharcava o corpo chamou atenção de todos por causa do cheiro, levado até eles pelos ventos que ainda correm frouxos esta noite. Não ousei olhar para trás! Fugi tal qual um rato costuma fugir para não ser devorado por um vampiro esfomeado. Eles desistiram da luta, até porque não havia mais pelo que lutar e me vieram no encalço.
É isso!
Consegui chegar até aqui incólume. Subi rápido como uma flecha todos estes andares. Tranquei a porta que dá acesso a esta marquise e sei que os mestres vampiros, depois de tentarem arrombá-la, desistiram e fizeram o mesmo comigo. Pregaram a porta pelo lado de dentro. É a minha punição. Agora, eles apenas aguardam o meu fim.
Tu estranhas porque, a despeito de meu desespero, percebes em meus lábios um tênue sorriso, não é? É engraçado mesmo a minha situação. Sempre ouvi atentamente as histórias de minha raça quando éramos poucos sobre esta terra. Ouvi histórias sobre nossas qualidades, nossos pontos fracos, nossas habilidades e os mitos daí decorrentes. Contam alguns, em tom nostágico, que podíamos nos transformar em morcegos e alçar vôo para onde quiséssemos. Ahhh... que bom pudesse eu fazer isso agora. Mas qual o que! Tenho medo de alturas e tal habilidade, sei perfeitamente, é uma quimera. Por outro lado há coisas em nossa natureza que são imutáveis. A luz solar, por exemplo, ainda é um instrumento de morte extremamente cruel e doloroso para nós.
Por isso, olhes atentamente para além daqueles edifícios de arquitetura pontiaguda. Tu estás vendo? É a partir de lá que daqui a alguns minutos os primeiros raios de sol irão transpor as espessas nuvens negras radioativas e irão varrer, em velocidade lenta e gradativa, as artérias desta cidade despedaçada. Vou morrer do pior jeito. Todos nós temos muito medo de morrer assim. Talvez seja esta a única coisa que os membros de nossa raça sempre invejaram nos “humanos”. Onde eles viam uma imagem bela ao nascer do dia, nós sempre vimos à morte e a condenação eterna de buscar a escuridão.
Portanto, é chegada a hora. Já começo a sentir as horríveis queimaduras. Afasta-te de mim e olhes para o outro lado porque o que me aguarda não é um espetáculo bonito de se ver...
***************
Naquele fatídico início de manhã conta-se que não se soube com quem Gorki falava. Não se tinha certeza se ele falava realmente com um alienígena, vindo de uma galáxia distante ou se a sua mente, deturpada de tanto sugar sangue de rato, travava conversa com um amigo imaginário. O único fato certo em toda esta história é que naquela manhã os ventos fortes espalharam as cinzas de Gorki por sobre toda a cidade que sempre ofereceu-lhe pouco mas da qual, apesar de tudo, ele gostava muito.
FIM
_____________________________________________
De alguns dias para cá, tenho medo de dormir. Só Deus sabe o que me acontece nos sonhos – tenho a leve impressão que nem mesmo Deus sabe. Entretanto, às vezes caio no sono sem perceber, e retorno para aquele lugar maldito. Eu escuto bem distante o barulho do mar, que chega aos meus ouvidos tão leve que pode perder-se em meio a qualquer ruído. O problema é que não há outro ruído. É tudo silêncio; quebrado, quando bate o vendo, vez ou outra.
Não há um sonho em que adormeço aqui e desperto lá. Mas quando lá desperto, estou zonzo. Quero dizer, minha visão entorpece, e desnorteado fico por um bom tempo. Tenho a impressão de que eu estou deitado n’uma cama, ou só n’um colchão qualquer, direto no frio chão, e a primeira coisa que meus olhos veem, é a claridade que entra pela porta da sacada. Não há uma vez que eu não olhe para os lados, mas não há uma vez, no entanto, que eu consiga distinguir tudo a minha volta. Os objetos me são completamente estranhos, e anormais. De ângulos às vezes improváveis, alguns até confusos (eu falo dos contornos que terminam dentro deles mesmos) e outros com brilho próprio. Tudo o que meus olhos veem eu interpreto como uma confusão. Confusão mental.
Quando tento levantar-me, e percebo que não era uma cama na qual eu havia despertado, mas n’algo como um símbolo esculpido em contato direto no chão, exatamente do meu tamanho e de aproximadamente quinze centímetros de largura, o esforço faz meu coração pulsar mais rápido. Não enxergo mais do que uma imagem nublada, difusa, mas sempre tento chegar mais perto dela, cambaleando.
Preciso sempre tapar meus olhos com minha mão direita (minha pele... vejo que minha pele tem escamas, mas isso não me assusta no sonho) quando chego a centímetros da porta da sacada, e nela me escoro. Eu vejo, a todo custo e forçando a visão, uma imagem fantástica, mas ainda assim aterradora. Vejo prédios, enormes prédios para cima e para baixo, e sinto o toque do vento em meu rosto. É assustador. Prédios de formatos diversos: de cinco e seis pontas até o mais quadrado possível. Alguns deles, uma cruz ornamenta o topo. Outros, redondos, uma estranha escultura.
Eu tento chegar mais próximo possível de cada um deles, escorando-me na sacada. Minha visão passa sempre a ficar nítida nesse momento. Então não sei se fico apavorado por constatar que cada um daqueles prédios tinha, pelo menos, cinquenta mil vezes a minha idade, ou pela distância que eu estava do chão (o apartamento, ou andar que eu estava, ficava a uns oitenta mil metros do chão, segundo meus cálculos), ou no que me transformei.
Tudo aquilo era estranho aos meus olhos. Mais estranho ainda era a beleza que possuía. Para qualquer lugar que meus olhos iam, prédios mais encorpados e outros mais finos se faziam presentes. Ninguém dentro deles, ninguém lá embaixo; somente eu que vislumbrava tal aterradora beleza, que me causava horror. O céu não era nem azul, nem branco, mas uma profusão de cores que pouco ou nada distingui. No início eu não sabia o que fazer, mas com o passar do tempo, descobri que poderia partir dali voltando a deitar naquele estranho símbolo de aproximadamente quinze centímetros de largura. Toda vez que eu o olhava, sentia algo no peito apertar. Aflição, talvez.
Descobri, recentemente, que aquele silencioso lugar (só o vento como música aos meus ouvidos), possuía um motivo para existir. Dizem que a literatura, assim como os ritos sagrados e os mitos, é capaz de captar informações que escapam às nossas percepções. E foi através da literatura (fantástica) que descobri algo. A cidade da qual erguem-se ciclópicos prédios de um solo desconhecido, aquela na qual Katulu adormece esperando o alinhamento das estrelas para despertar e voltar a reinar a Terra, é aquela de um nome difícil de pronunciar. Apesar de eu não entender qual ligação entre mim e ‘ru.li.a existia, senti que eu era o único humano que naquelas terras pisou. Ph’nglui mglw’nafh Cthulhu R’Lyeh wgah’nagl fhtagn. Então um desejo mórbido de adorá-lo surgiu. Hoje desconfio que desaparecer aqui e aparecer lá, já me estava reservado. Na sua morada em R’Lyeh, Cthulhu morto espera sonhando. E se me chamarem de louco, responder-lhes-ei que sou profeta. Profeta, pois, de verdades impronunciáveis. Ce n'est pas morte, ce qui peut être éternel, et d'étranges éternités mai mourir même la mort¹.
FIM
¹ Em francês:
“Não está morto o que pode eternamente jazer,
E com estranhas eras pode até a morte morrer”.
_______________________________________________
Do alto de sua torre, Ultor observava o reino, sua herança maldita a cobrir-se de fumaça e trevas. A peste havia chegado e com ela, cumprir-se-ia enfim a promessa feita há vinte anos. Viera através de Ana de Bogna, cozinheira cujo destino sempre fora servir, naquela noite, desviara-se dos guardas para encontrar-se com o namorado num canto escuro de um dos jardins, mas jamais chegara ao encontro, o corpo fora encontrado coberto de pústulas que estouravam e formava úlceras; delirante pela febre, ela murmurava, "não, não deixem o herdeiro me pegar, não, os seus dentes..." A ladinha repetiu-se até decidirem averiguar. Esgueirando-se para a torre, tomados de medo e raiva, os homens foram recebidos com um olhar calmo por aquele ser assombroso. As ratazanas guinchavam desesperadamente, mas as mãos finas tocaram o pelo asqueroso e elas calaram-se; pela primeira vez, alguém ouvia a voz de Ultor. "Está feito", ele disse e mais uma vez, calou-se. A partir deste dia o caos e a morte chegaram ao reino, a peste espalhara-se e já não havia lugar para enterrar os mortos, que iam sendo queimados para evitar maiores contágios. O céu tingiu-se de vermelho e um cheiro ocre espalhou-se.
Nascimento
As rodas da carruagem saltavam sobre as ruas e feriam a neblina da cidade, levando para longe a prova viva de um dos maiores horrores que o homem já cometera. Na janela mais alta de seu palacete, o Conde Lars Ulrich de Rouam fechou as cortinas e voltou-se para sua nova existência, enquanto a carruagem seguia veloz em seu caminho para o interior. Angeline, sua filha, jamais seria vista novamente. A enfermidade súbita a afastara dos poucos amigos, os criados mais próximos jamais saberiam explicar o que acontecera. "Está feito", disse ao pequeno homem que o observava nas sombras.
Após horas de viagem sacudindo-se pela estrada cheia de percalços, a roda de madeira não aguentou a velocidade e quebrou-se, a carruagem virou-se, despencando em meios a arbustos e um barranco enlameado. Assim, os primeiros gritos da jovem mãe foram anunciados. O bebê chegara cedo demais. "Ayudame Maria", arquejava Angeline, ayudame! Entretanto, a espanhola que fora sua ama desde que dera os primeiros vagidos, tinha o pescoço estranhamente retorcido e já não poderia responder. Estava morta. Gotas de suor e tremores sacudiram o corpo enfraquecido, entanto não havia tempo para lágrimas ou pesar. A moça gritou por horas, agarrada ao braço do velho cocheiro, confidenciando-lhe em delírios sobre um homem que derramara sangue sobre seu corpo e de mãos descarnadas que a ameaçavam. O cocheiro benzeu-se quando viu as névoas que os cobriam repentinamente e um arrepio o percorreu quando a menina cravou as unhas em sua pele, implorando por ajuda, "os ratos, estão por toda parte, os ratos, os dentes... estão me devorando..." Finalmente um lamento agudo se fez ouvir, com o apoio do rude homem, o pequeno nascera. Desfalecida pela dor, a jovem mãe não viu quando recebeu o bebê enrolado em seus braços. Pedro de Aguirre era um homem prático, a roda estava imprestável, quiçá todo o veículo. Tais condições, somadas à aparência doentia da moça e do recém nascido indicavam como única solução a busca imediata por ajuda. Partiu deixando a pequena família encostada no que sobrara da carruagem. Em meio a este local desconhecido e solitário, nascia o único filho de Angeline de Rouan. O filho da vergonha e da dor cresceria sem suas benções e sem o carinho de mãe. A morte chegara com a vida.
Não se sabe ao certo quantos dias Pedro caminhou para conseguir a ajuda que necessitara, quando os servos o encontraram, estava ferido e delirante, balbuciando sobre uma floresta maldita onde a menina os aguardava com o neto do conde. Ao longe ouviram os lamentos agudos, como de um gato agonizante clamando por socorro. O corpo da jovem mãe já estava em decomposição, mas seus braços seguiam firmemente agarrados a trouxa em farrapos que lançava agudos bramidos pelo ar. O que viram aqueles homens jamais esqueceriam: o rosto desfigurado da moça apresentava-se lacerado, o cheiro da morte, mescla de sangue coagulado, enxofre e pruridos diversos empesteava o ar, espalhando-se quando a trouxa foi retirada dos braços endurecidos. Um enterro as pressas, o asco e a repugnância que o cheiro do bebê despertou marcariam seu destino; as pessoas sempre estariam afastadas do herdeiro do conde.
Não encontraram ama para a criança. Os poucos relatos que resistiram ao tempo e chegaram posteriormente à corte, contavam que o povo olhava com desconfiança para aquele que colhera a vida da mãe ao nascer, pois além da aparência sombria, o cheiro da morte permanecera com ele. O filho da jovem beldade não herdara sua beleza, seus traços eram degenerados e repugnantes, principalmente os olhos claros assustavam as amas, que temiam ter o leite seco para os próprios filhos, por isso foi amamentado com leite de cabra, a pele era fria e endurecida. Por ser o herdeiro do conde, em seus primeiros anos recebeu o tratamento que lhe permitiu sobreviver na zona rural. As poucas crianças o evitavam, o avô jamais o procurara, mas era saudável e crescia, apesar do pequeno horror que sentiam os que o encontravam inesperadamente, acostumaram-se a sua presença no pequeno feudo, recebiam raras visitas e aceitavam calados o destino de servir sem questionar.
A corte
O salão dourado reunia a nata da nobreza, que observava o homem curvado fazendo malabarismos, o olhar malicioso arrancando risadas exageradas dos cortesãos. O corpo abandonado no trono, coberto por jóias riquíssimas, e sendo acariciado por jovens beldades, o Rei Lars Ulrich de Rouam observava todos com olhos semicerrados quando um homem aflito adentrou ao salão dourado. O que dissera ao rei não se sabe, mas imediatamente o rosto apresentou a dureza que lhe era característica, a festa estava acabada.
Numa saleta, o garoto aguardava, observado com atenção por dois soldados e um servo rústico e de aspecto debilitado. Finalmente conheceria o avó que o mandara para tão distante. Aos dez anos, sua aparência tornara-se ainda mais assustadora, a carne da face parecia solta sobre os ossos, apesar dos músculos fortalecidos, veias saltavam arroxeadas por detrás da pele esverdeada e uma corcova se anunciava. Mas o primeiro contato do rei com Ultor não se dera pelo olhar, fora o cheiro nauseabundo que o encontrara ainda no corredor, mistura de madeiras apodrecidas e úmidas, gengivas estragadas pelo escorbuto e o ranço das feridas mais infectadas não poderiam descrever o cheiro que espalhava-se pelo castelo. "O cheiro do demônio", murmurou o rei, ao entrar na pequena sala. Todos ajoelharam-se, menos o jovem que desconhecia qualquer regra e portava-se mesmo como um pequeno selvagem. As poucas crônicas da época dizem apenas que o campônio fora duramente castigado por trazê-lo ate ali, mas não houvera surpresa nos olhos do rei, apenas curiosidade e um leve tremor de lábios ao ver os olhos claros fitando-o. O feudo fora atacado na noite em que o garoto faria dez anos. Dizimados os aldeões e os simplórios senhores feudais que o abrigavam, a morte mais uma vez se desviara dele. Um dos poucos sobreviventes recebera a incumbência de levá-lo ate o reino, para que fosse decidido o seu destino. E assim foi feito.
Aquele era um reino rico e opulento, as colunas erguiam-se majestosas e catedrais agulhadas ambicionavam o céu. Pois em meio aquelas torres pontiagudas e imponentes, o herdeiro encontraria sua morada. Uma porta selada e a altura incomensurável o manteriam afastado dos olhares curiosos. Logo, os aposentos ao seu redor foram abandonados, pois o cheiro que o rodeava contaminava a todos. Sempre oculto nas sombras, ainda mais que no antigo feudo, fora duramente castigado no dia que ousara sair de sua morada. Não chorava nem falava, mas desenhava com avidez, pequenos carvões tornavam os olhos ainda mais brilhantes e durante horas dedicava-se a escrever estranhos hieróglifos nas paredes, entoando arremedos de canções insanas e grunhidos; emaranhadas, suas escritas confundiam-se e espalhavam-se até alturas inexplicáveis. Os servos temiam-no, desde sua chegada, ratazanas cresciam e infestavam o castelo de maneira anormal, mais de uma vez, fora surpreendido cercado por elas, em guinchos, parecendo comunicar-se com os animais. O primeiro acidente aconteceu com o jovem Thiago, ao levar a comida ao herdeiro – assim chamado as escondidas pelos criados – ao ser surpreendido guinchando com suas mascotes, lhe dirigira um olhar tão feroz que o menino voltara correndo para a cozinha, recusando-se a seguir as ordens para que voltasse. Não se sabe como, mas naquela noite, ardeu em febres, delírios e na manhã seguinte, o corpo sem vida apresentava lacerações como se pequenos e pontiagudos dentes o tivessem ferido. Todo sangue fora retirado do seu corpo franzino.
A cobrança
O rei seguia indiferente, acumulando riquezas e amantes, de suas guerras era sempre o vencedor, um império estava se formando e sob a égide do castigo e da virulência, recebia obediência cega. No entanto, entre as gentes menores do reino, corriam boatos. Outrora havia no reino um rei justo e pacífico, cuja morte inesperada, assim como dos três sucessores imediatos despertara desconfianças, mas nada fora provado e assim Lars Ulrich de Rouam tornara-se o novo e tirano rei. Os murmúrios sobre a súbita ascensão cresciam junto com a insatisfação do povo e dos nobres, estes, manipuladores de segredos, encontraram em um antigo médico da corte caído em desgraça, elementos para vingar-se do novo rei. E assim a historia deste estranho personagem começava a esclarecer-se, à medida que a repugnância em relação a ele crescia.
Em troca de algumas moedas de ouro, entregara este médico um pequeno diário pertencente ao seu falecido pai, servo das sombras que fizera junto ao rei, um pacto demoníaco. Ultor, por toda repugnância que despertara, era de fato um herdeiro, mas não um príncipe herdeiro da terra, era um herdeiro do inferno, era um maldito, o filho do incesto e da decadência, a prova viva da maldade e da ambição, o herdeiro do demônio, cuja primeira vítima fora aquela Angeline morta aos 14 anos, seviciada pelo pai em uma missa negra. Entregue a estranhos e profanos rituais, fora escolhida pelo parricida para abrigar o corpo daquele que ficaria conhecido por todos como o herdeiro. Em troca da pureza de sua filha, tornara-se o novo rei, com poderes grandiosos, não oferecera somente a sua alma e de todos do seu reino para quando o senhor das trevas fosse cobrar o preço, oferecera o ventre de sua única filha para abrigar aquele que seria o primeiro de muitos filhos do demônio em terra, seres tão malignos e bestiais que trariam consigo a doença nas unhas e nos dentes, seres que carregariam consigo todos os odores do inferno e teriam como missão colher as almas para o reino de seu verdadeiro pai, um demônio tão antigo quando os elementos tomara o corpo de Lars Ulrich de Rouam para plantar a semente do mal naquela noite nefasta. E desta semente nascera Ultor, cujos traços degenerados, os dentes apodrecidos e pontiagudos adornados por uma carne flácida e pútrida completavam o quadro terrificante. Horrendo e forte, todas as noites escalava as complexas torres para ter acesso a um pequeno balcão, onde, cercado por ratazanas, observava a vida no reino.
No entanto, quando o segredo foi descoberto, trouxera com ele o preço acertado, de nada adiantara aos inimigos do rei conhecer tão hedionda verdade, pois em dez dias, o horror corporificara-se, lamentos e mortes não poupavam ninguém; a fumaça espalhava o constante odor da morte. Era chegada a hora da cobrança. O fim de Rei Lars Ulrich de Rouam fora inesperado, ao ver a decadência do reino e de seus súditos, lembrou-se da promessa feita ao demônio. Ele então não acolhera e criara o filho da besta, aquele nascido de sua própria filha? Seria mesmo este o fim de seu reinado, não fora ele um servo fiel? Com estes pensamentos, seguiu a procura de Ultor, mas ao entrar na cela úmida, escutou apenas um grunhido; virou e deparou-se com uma enorme ratazana, os olhinhos brilhando no escuro, enfurecido, chutou o animal imundo, mas sentiu nas pernas que algo o roçava, era outra, ainda maior; gritou pelos criados, mas seguindo suas próprias ordens, aqueles se mantinham afastados dali durante a noite. O rei caminhou em direção à porta quando seus pés tropeçaram em outra ratazana, os guinchos aumentaram quando caiu pesadamente ao solo e foi lentamente cercado pelos animais. Exibindo dentes agudos e ferozes, avançaram sobre ele, "os ratos, estão por toda parte, os ratos, os dentes... estão me devorando..." seus gritos percorreram inutilmente os corredores e salas vazias. O reino dourado chegava ao fim ao som de guinchos e dentes mastigando com ferocidade.
Do alto de sua torre, Ultor sorriu, virando levemente o pescoço para aquele que havia sido seu progenitor terreno, depois voltou a observar o reino. As agulhas enegrecidas pela fumaça apontavam para o alto como se pedissem por socorro, mas a fumaça e as trevas cobririam a luz por muito tempo. O novo reino se estabeleceria por séculos.
Fim?
__________________________________________________
__________________________________________________
Quero te contar, em poucas palavras, o que me acontece. Quero te explicar, antes que eu abandone este mundo nojento, o que me levou a subir este velho edifício na tentativa de buscar abrigo justamente aqui. Gosto muito deste lugar. É o meu local predileto de meditação e, infelizmente, por ironia do destino, torna-se-á, esta marquise, meu cadafalso: o instrumento inglório de minha execução! Sendo tu, uma criatura alienígena totalmente isenta da deterioração execrável deste planeta, podeis estar se perguntando: o mundo do jeito que está, tomado por vampiros, não é melhor para você? E aí eu te respondo: é claro que não! O mundo infestado pela população de vampiros, onde “os humanos” de sangue vermelho e quente contam-se nos dedos de uma das mãos, é uma merda! Sim, senhor! Um grande e enorme amontoado de bosta!
Sem mais delongas, preciso te explicar como os fatos se sucederam até o presente momento porque já vejo no teu semblante a tua impaciência. Tu estás com pressa também por averiguar as artérias entupidas desta Necrópole. Não há muito o que ver, eu te garanto! Somos o que somos: criaturas em decadência que se entredevoram sem o prazer de antes. Não vou me ater em como foi que a população se transformou no que somos hoje, porém ofereço-te um vislumbre do que se pretende fazer para se retornar aos velhos e bons tempos.
Meu nome é Gorki, um vampirinho qualquer, sem eira nem beira, a quem foi incumbido de salvaguardar quatro “pessoas” de sangue quente. O clã a qual pertenço vê como única saída para a nossa salvação o estímulo da reprodução humana. Eles, “os humanos”, precisam se multiplicar novamente para que venham a ter no futuro a mesma serventia que tinham para nós no passado: vasilhames acondicionados do mais puro mel vermelho! O líquido precioso e adocicado que nos enche de prazer, nos revigora e nos embeleza como verdadeiros príncipes, costumam dizer os vampiros mestres. Sem eles, “os de sangue vermelho e quente”, estamos condenados a uma existência medíocre e sofrida, absorvendo migalhas que se escondem nos esgotos... uhg... ratos são horríveis. Quando eles nos faltam, os roedores, somos obrigados a sugar os companheiros mais fragilizados, mas nem de longe, dizem os mais velhos, o líquido espesso, escuro e frio que corre em nossas veias se compara ao vermelho morno de outrora.
Mas deixe-me continuar... pois bem, Os Arkons, um clã que pouco se importa com o nosso destino, uma vez que, se nada for feito, iremos nos destroçar mutuamente até que o último fique de pé, descobriu estes raros espécimes humanos escondidos nos recônditos mais profundos de um velho bunker antinuclear. Os membros mais fortes de meu clã, os Dracônius, guerreiros de boa cepa, muitos deles vampiros experientes de 200, 300 anos de idade, decidiram proteger os casais de “humanos” para serem levados à outra cidade, onde se lhes ofereceriam condições tranqüilas de acasalamento. A produção, como tu deves bem saber, é lenta, porém temos a longevidade dos anos a nosso favor. O que nos falta é paciência para esperar os frutos deste investimento. Delegaram-me, portanto, a missão de protegê-los com a minha própria vida, se preciso fosse, enquanto a luta entre as duas facções estivesse em andamento.
Os quatro “humanos” foram acorrentados à parede. Ficamos protegidos numa das salas do abrigo subterrâneo. Nem sei direito como tudo foi desembocar para o incidente que me condenou. A mulher mais nova era linda, sabe? No entanto não foi a beleza física dela que me atraiu. Não! Não foi não. Foi uma sensação que nunca havia sentido antes até porque, cumpre registrar, também nunca havia ficado perto de uma criatura superior de sangue quente. E posso te garantir: foi a experiência mais inebriante que tive em toda a minha vida. Tu podes até não acreditar, mas segui os conselhos do velho Iago, o mestre vampiro-mor: “fique longe deles e não os olhe demoradamente”.
E assim o fiz.
Desviei os olhos deles o tempo todo, apenas ouvindo a ladainha das duas mulheres amedrontadas. De início, nos primeiros minutos, nada senti, mas à medida que o barulho do embate lá fora ia diminuindo, um cheiro irresistível e inefável começou a impregnar o ar! Huuumm... o que era aquilo? Minha boca, de repente, encheu-se d’água, minha língua, enegrecida pelo gosto dos ratos pestilentos, começou a estalar incontinenti, meu estômago revirou-se agitado. Acredite! Toda a estrutura minguada das carnes e ossos que me sustentam vibraram intermitente no compasso da batida do coração da “humana” mais próxima de mim. Voltei-me hipnotizado para ela.
E o que vi me deixou atônito, quase sem ar!
O rosto, os braços, as pernas, o pescoço, partes do corpo daquela mulher, não cobertas pela roupa desbotada, ganharam uma tonalidade bem mais clara e transparente! Luminosa eu diria! Sim! Luminosa! Como se... como se... talvez a descrição não seja a mais apropriada... bem... como se a criatura tivesse uma lâmpada interna acesa dentro de si! Pude ver com clareza, tenhas certeza disso, destacando-se na luminescência da pele, as centenas e centenas de ramificações que compunham a rede de veias por onde fluíam o tal líquido precioso de que tanto ouvira falar: o puro mel vermelho! Sim! Te afirmo e não faço meias palavras! Eu podia vê-lo fluindo graciosamente dentro daquela fêmea. Fico emocionado só de falar! Pela primeira vez na vida, porque sou jovem e já nasci vampiro, pude presenciar semelhante fenômeno. Tenho certeza que esta falta de experiência selou meu destino.
“Os de sangue quente” perceberam o meu estado de ebulição. Começaram a se agitar tentando se desvencilhar das correntes. Tolos! A mulher a quem encarava sem perder o foco expressava pânico em seus olhos arregalados quando percebeu que a baba do desejo me escorria abundante pelos cantos da boca. Quis impressioná-la. Arreganhei selvagemmente os meus dentes pontiagudos, sentindo-os projetarem-se de forma pouco comum. Emiti meu urro de guerra! Ela saltou contra a parede assustada. As pernas lhe faltaram e ajoelhou-se implorando pela vida. Foi engraçado ( rs, rs, rs ). Não senti pena, nem remorso. Senti fome. Muita fome.
E ataquei!
Sempre soube que um dia eu me saciaria do mel vermelho. Muitas vezes, aqui mesmo, nesta marquise, folheei antigas revistas onde via imagens de vampiros charmosos sugando o pescoço de lindas mulheres entregues docemente aos seus encantos. Ficava sonhando, sabe? Ficava imaginando degustar vagarosamente aquele momento. No entanto, devo reconhecer que não fui nem um pouco delicado com as minhas primeiras vítimas “humanas”. O companheiro dela quis protegê-la jogando-se de encontro a mim. Não tomei conhecimento! Minhas garras afiadas cortaram-lhe a garganta de um único golpe. Ele cambaleou para trás alguns passos e desabou no piso encardido do quarto. Tentou desesperadamente estancar a hemorragia. Imbecil! O cheiro e a visão do sangue avermelhado invadiu as minhas narinas de forma avassaladora. Destruiu a minha razão! Investi minhas necessidades em cima da mulher. O terror dela foi tanto que não chegou a gritar. As cenas artísticas de um vampiro charmoso sugando a presa nem me passaram pela cabeça. Não. Foi uma bocada só! Firme! Certeira! Enfiei todos os meus dentes na carne macia e suculenta, apertei e retirei um naco do pescoço dela cuspindo-o em seguida para o lado. A carótida espirrou o mel vermelho a metros de distância e abocanhei o ferimento novamente bebendo tudo em fartos goles pulsantes.
O gosto do mel vermelho? Humm... Tu não tens a menor noção. Foi indescritível. Ficaria horas e horas aqui falando sobre o prazer que percorreu todo o meu corpo.
E tu pensas que me contentei apenas com a mulher? Não! Queria mais, apesar de estar saciado! Queria experimentar o sangue dos outros para ver se o gosto e a textura mudava de um corpo para o outro. Como te disse: perdi completamente a razão! Matei todos!
Assim que me dei conta da besteira que havia feito sabia que estava condenado. “Os de sangue quente” são raríssimos de encontrar. Tanto isto é verdade que, apesar dos parcos 25 anos que tenho, nunca vira um deles pessoalmente. Por isso, não pensei duas vezes em sair rapidamente do abrigo nuclear e fugir da cidade que tanto gosto. Quando cheguei à superfície para ganhar a direção da fuga, o combate mortal entre os clãs se dava próximo à entrada do abrigo. O mel vermelho que me encharcava o corpo chamou atenção de todos por causa do cheiro, levado até eles pelos ventos que ainda correm frouxos esta noite. Não ousei olhar para trás! Fugi tal qual um rato costuma fugir para não ser devorado por um vampiro esfomeado. Eles desistiram da luta, até porque não havia mais pelo que lutar e me vieram no encalço.
É isso!
Consegui chegar até aqui incólume. Subi rápido como uma flecha todos estes andares. Tranquei a porta que dá acesso a esta marquise e sei que os mestres vampiros, depois de tentarem arrombá-la, desistiram e fizeram o mesmo comigo. Pregaram a porta pelo lado de dentro. É a minha punição. Agora, eles apenas aguardam o meu fim.
Tu estranhas porque, a despeito de meu desespero, percebes em meus lábios um tênue sorriso, não é? É engraçado mesmo a minha situação. Sempre ouvi atentamente as histórias de minha raça quando éramos poucos sobre esta terra. Ouvi histórias sobre nossas qualidades, nossos pontos fracos, nossas habilidades e os mitos daí decorrentes. Contam alguns, em tom nostágico, que podíamos nos transformar em morcegos e alçar vôo para onde quiséssemos. Ahhh... que bom pudesse eu fazer isso agora. Mas qual o que! Tenho medo de alturas e tal habilidade, sei perfeitamente, é uma quimera. Por outro lado há coisas em nossa natureza que são imutáveis. A luz solar, por exemplo, ainda é um instrumento de morte extremamente cruel e doloroso para nós.
Por isso, olhes atentamente para além daqueles edifícios de arquitetura pontiaguda. Tu estás vendo? É a partir de lá que daqui a alguns minutos os primeiros raios de sol irão transpor as espessas nuvens negras radioativas e irão varrer, em velocidade lenta e gradativa, as artérias desta cidade despedaçada. Vou morrer do pior jeito. Todos nós temos muito medo de morrer assim. Talvez seja esta a única coisa que os membros de nossa raça sempre invejaram nos “humanos”. Onde eles viam uma imagem bela ao nascer do dia, nós sempre vimos à morte e a condenação eterna de buscar a escuridão.
Portanto, é chegada a hora. Já começo a sentir as horríveis queimaduras. Afasta-te de mim e olhes para o outro lado porque o que me aguarda não é um espetáculo bonito de se ver...
***************
Naquele fatídico início de manhã conta-se que não se soube com quem Gorki falava. Não se tinha certeza se ele falava realmente com um alienígena, vindo de uma galáxia distante ou se a sua mente, deturpada de tanto sugar sangue de rato, travava conversa com um amigo imaginário. O único fato certo em toda esta história é que naquela manhã os ventos fortes espalharam as cinzas de Gorki por sobre toda a cidade que sempre ofereceu-lhe pouco mas da qual, apesar de tudo, ele gostava muito.
FIM
_____________________________________________
APENAS UM SONHO
Leonardo Nunes Nunes
Leonardo Nunes Nunes
De alguns dias para cá, tenho medo de dormir. Só Deus sabe o que me acontece nos sonhos – tenho a leve impressão que nem mesmo Deus sabe. Entretanto, às vezes caio no sono sem perceber, e retorno para aquele lugar maldito. Eu escuto bem distante o barulho do mar, que chega aos meus ouvidos tão leve que pode perder-se em meio a qualquer ruído. O problema é que não há outro ruído. É tudo silêncio; quebrado, quando bate o vendo, vez ou outra.
Não há um sonho em que adormeço aqui e desperto lá. Mas quando lá desperto, estou zonzo. Quero dizer, minha visão entorpece, e desnorteado fico por um bom tempo. Tenho a impressão de que eu estou deitado n’uma cama, ou só n’um colchão qualquer, direto no frio chão, e a primeira coisa que meus olhos veem, é a claridade que entra pela porta da sacada. Não há uma vez que eu não olhe para os lados, mas não há uma vez, no entanto, que eu consiga distinguir tudo a minha volta. Os objetos me são completamente estranhos, e anormais. De ângulos às vezes improváveis, alguns até confusos (eu falo dos contornos que terminam dentro deles mesmos) e outros com brilho próprio. Tudo o que meus olhos veem eu interpreto como uma confusão. Confusão mental.
Quando tento levantar-me, e percebo que não era uma cama na qual eu havia despertado, mas n’algo como um símbolo esculpido em contato direto no chão, exatamente do meu tamanho e de aproximadamente quinze centímetros de largura, o esforço faz meu coração pulsar mais rápido. Não enxergo mais do que uma imagem nublada, difusa, mas sempre tento chegar mais perto dela, cambaleando.
Preciso sempre tapar meus olhos com minha mão direita (minha pele... vejo que minha pele tem escamas, mas isso não me assusta no sonho) quando chego a centímetros da porta da sacada, e nela me escoro. Eu vejo, a todo custo e forçando a visão, uma imagem fantástica, mas ainda assim aterradora. Vejo prédios, enormes prédios para cima e para baixo, e sinto o toque do vento em meu rosto. É assustador. Prédios de formatos diversos: de cinco e seis pontas até o mais quadrado possível. Alguns deles, uma cruz ornamenta o topo. Outros, redondos, uma estranha escultura.
Eu tento chegar mais próximo possível de cada um deles, escorando-me na sacada. Minha visão passa sempre a ficar nítida nesse momento. Então não sei se fico apavorado por constatar que cada um daqueles prédios tinha, pelo menos, cinquenta mil vezes a minha idade, ou pela distância que eu estava do chão (o apartamento, ou andar que eu estava, ficava a uns oitenta mil metros do chão, segundo meus cálculos), ou no que me transformei.
Tudo aquilo era estranho aos meus olhos. Mais estranho ainda era a beleza que possuía. Para qualquer lugar que meus olhos iam, prédios mais encorpados e outros mais finos se faziam presentes. Ninguém dentro deles, ninguém lá embaixo; somente eu que vislumbrava tal aterradora beleza, que me causava horror. O céu não era nem azul, nem branco, mas uma profusão de cores que pouco ou nada distingui. No início eu não sabia o que fazer, mas com o passar do tempo, descobri que poderia partir dali voltando a deitar naquele estranho símbolo de aproximadamente quinze centímetros de largura. Toda vez que eu o olhava, sentia algo no peito apertar. Aflição, talvez.
Descobri, recentemente, que aquele silencioso lugar (só o vento como música aos meus ouvidos), possuía um motivo para existir. Dizem que a literatura, assim como os ritos sagrados e os mitos, é capaz de captar informações que escapam às nossas percepções. E foi através da literatura (fantástica) que descobri algo. A cidade da qual erguem-se ciclópicos prédios de um solo desconhecido, aquela na qual Katulu adormece esperando o alinhamento das estrelas para despertar e voltar a reinar a Terra, é aquela de um nome difícil de pronunciar. Apesar de eu não entender qual ligação entre mim e ‘ru.li.a existia, senti que eu era o único humano que naquelas terras pisou. Ph’nglui mglw’nafh Cthulhu R’Lyeh wgah’nagl fhtagn. Então um desejo mórbido de adorá-lo surgiu. Hoje desconfio que desaparecer aqui e aparecer lá, já me estava reservado. Na sua morada em R’Lyeh, Cthulhu morto espera sonhando. E se me chamarem de louco, responder-lhes-ei que sou profeta. Profeta, pois, de verdades impronunciáveis. Ce n'est pas morte, ce qui peut être éternel, et d'étranges éternités mai mourir même la mort¹.
FIM
¹ Em francês:
“Não está morto o que pode eternamente jazer,
E com estranhas eras pode até a morte morrer”.
_______________________________________________
O HERDEIRO
Tânia Mara Souza
Tânia Mara Souza
E ele disse: “Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares. ”
Mateus 4:9
Mateus 4:9
Do alto de sua torre, Ultor observava o reino, sua herança maldita a cobrir-se de fumaça e trevas. A peste havia chegado e com ela, cumprir-se-ia enfim a promessa feita há vinte anos. Viera através de Ana de Bogna, cozinheira cujo destino sempre fora servir, naquela noite, desviara-se dos guardas para encontrar-se com o namorado num canto escuro de um dos jardins, mas jamais chegara ao encontro, o corpo fora encontrado coberto de pústulas que estouravam e formava úlceras; delirante pela febre, ela murmurava, "não, não deixem o herdeiro me pegar, não, os seus dentes..." A ladinha repetiu-se até decidirem averiguar. Esgueirando-se para a torre, tomados de medo e raiva, os homens foram recebidos com um olhar calmo por aquele ser assombroso. As ratazanas guinchavam desesperadamente, mas as mãos finas tocaram o pelo asqueroso e elas calaram-se; pela primeira vez, alguém ouvia a voz de Ultor. "Está feito", ele disse e mais uma vez, calou-se. A partir deste dia o caos e a morte chegaram ao reino, a peste espalhara-se e já não havia lugar para enterrar os mortos, que iam sendo queimados para evitar maiores contágios. O céu tingiu-se de vermelho e um cheiro ocre espalhou-se.
Nascimento
As rodas da carruagem saltavam sobre as ruas e feriam a neblina da cidade, levando para longe a prova viva de um dos maiores horrores que o homem já cometera. Na janela mais alta de seu palacete, o Conde Lars Ulrich de Rouam fechou as cortinas e voltou-se para sua nova existência, enquanto a carruagem seguia veloz em seu caminho para o interior. Angeline, sua filha, jamais seria vista novamente. A enfermidade súbita a afastara dos poucos amigos, os criados mais próximos jamais saberiam explicar o que acontecera. "Está feito", disse ao pequeno homem que o observava nas sombras.
Após horas de viagem sacudindo-se pela estrada cheia de percalços, a roda de madeira não aguentou a velocidade e quebrou-se, a carruagem virou-se, despencando em meios a arbustos e um barranco enlameado. Assim, os primeiros gritos da jovem mãe foram anunciados. O bebê chegara cedo demais. "Ayudame Maria", arquejava Angeline, ayudame! Entretanto, a espanhola que fora sua ama desde que dera os primeiros vagidos, tinha o pescoço estranhamente retorcido e já não poderia responder. Estava morta. Gotas de suor e tremores sacudiram o corpo enfraquecido, entanto não havia tempo para lágrimas ou pesar. A moça gritou por horas, agarrada ao braço do velho cocheiro, confidenciando-lhe em delírios sobre um homem que derramara sangue sobre seu corpo e de mãos descarnadas que a ameaçavam. O cocheiro benzeu-se quando viu as névoas que os cobriam repentinamente e um arrepio o percorreu quando a menina cravou as unhas em sua pele, implorando por ajuda, "os ratos, estão por toda parte, os ratos, os dentes... estão me devorando..." Finalmente um lamento agudo se fez ouvir, com o apoio do rude homem, o pequeno nascera. Desfalecida pela dor, a jovem mãe não viu quando recebeu o bebê enrolado em seus braços. Pedro de Aguirre era um homem prático, a roda estava imprestável, quiçá todo o veículo. Tais condições, somadas à aparência doentia da moça e do recém nascido indicavam como única solução a busca imediata por ajuda. Partiu deixando a pequena família encostada no que sobrara da carruagem. Em meio a este local desconhecido e solitário, nascia o único filho de Angeline de Rouan. O filho da vergonha e da dor cresceria sem suas benções e sem o carinho de mãe. A morte chegara com a vida.
Não se sabe ao certo quantos dias Pedro caminhou para conseguir a ajuda que necessitara, quando os servos o encontraram, estava ferido e delirante, balbuciando sobre uma floresta maldita onde a menina os aguardava com o neto do conde. Ao longe ouviram os lamentos agudos, como de um gato agonizante clamando por socorro. O corpo da jovem mãe já estava em decomposição, mas seus braços seguiam firmemente agarrados a trouxa em farrapos que lançava agudos bramidos pelo ar. O que viram aqueles homens jamais esqueceriam: o rosto desfigurado da moça apresentava-se lacerado, o cheiro da morte, mescla de sangue coagulado, enxofre e pruridos diversos empesteava o ar, espalhando-se quando a trouxa foi retirada dos braços endurecidos. Um enterro as pressas, o asco e a repugnância que o cheiro do bebê despertou marcariam seu destino; as pessoas sempre estariam afastadas do herdeiro do conde.
Não encontraram ama para a criança. Os poucos relatos que resistiram ao tempo e chegaram posteriormente à corte, contavam que o povo olhava com desconfiança para aquele que colhera a vida da mãe ao nascer, pois além da aparência sombria, o cheiro da morte permanecera com ele. O filho da jovem beldade não herdara sua beleza, seus traços eram degenerados e repugnantes, principalmente os olhos claros assustavam as amas, que temiam ter o leite seco para os próprios filhos, por isso foi amamentado com leite de cabra, a pele era fria e endurecida. Por ser o herdeiro do conde, em seus primeiros anos recebeu o tratamento que lhe permitiu sobreviver na zona rural. As poucas crianças o evitavam, o avô jamais o procurara, mas era saudável e crescia, apesar do pequeno horror que sentiam os que o encontravam inesperadamente, acostumaram-se a sua presença no pequeno feudo, recebiam raras visitas e aceitavam calados o destino de servir sem questionar.
A corte
O salão dourado reunia a nata da nobreza, que observava o homem curvado fazendo malabarismos, o olhar malicioso arrancando risadas exageradas dos cortesãos. O corpo abandonado no trono, coberto por jóias riquíssimas, e sendo acariciado por jovens beldades, o Rei Lars Ulrich de Rouam observava todos com olhos semicerrados quando um homem aflito adentrou ao salão dourado. O que dissera ao rei não se sabe, mas imediatamente o rosto apresentou a dureza que lhe era característica, a festa estava acabada.
Numa saleta, o garoto aguardava, observado com atenção por dois soldados e um servo rústico e de aspecto debilitado. Finalmente conheceria o avó que o mandara para tão distante. Aos dez anos, sua aparência tornara-se ainda mais assustadora, a carne da face parecia solta sobre os ossos, apesar dos músculos fortalecidos, veias saltavam arroxeadas por detrás da pele esverdeada e uma corcova se anunciava. Mas o primeiro contato do rei com Ultor não se dera pelo olhar, fora o cheiro nauseabundo que o encontrara ainda no corredor, mistura de madeiras apodrecidas e úmidas, gengivas estragadas pelo escorbuto e o ranço das feridas mais infectadas não poderiam descrever o cheiro que espalhava-se pelo castelo. "O cheiro do demônio", murmurou o rei, ao entrar na pequena sala. Todos ajoelharam-se, menos o jovem que desconhecia qualquer regra e portava-se mesmo como um pequeno selvagem. As poucas crônicas da época dizem apenas que o campônio fora duramente castigado por trazê-lo ate ali, mas não houvera surpresa nos olhos do rei, apenas curiosidade e um leve tremor de lábios ao ver os olhos claros fitando-o. O feudo fora atacado na noite em que o garoto faria dez anos. Dizimados os aldeões e os simplórios senhores feudais que o abrigavam, a morte mais uma vez se desviara dele. Um dos poucos sobreviventes recebera a incumbência de levá-lo ate o reino, para que fosse decidido o seu destino. E assim foi feito.
Aquele era um reino rico e opulento, as colunas erguiam-se majestosas e catedrais agulhadas ambicionavam o céu. Pois em meio aquelas torres pontiagudas e imponentes, o herdeiro encontraria sua morada. Uma porta selada e a altura incomensurável o manteriam afastado dos olhares curiosos. Logo, os aposentos ao seu redor foram abandonados, pois o cheiro que o rodeava contaminava a todos. Sempre oculto nas sombras, ainda mais que no antigo feudo, fora duramente castigado no dia que ousara sair de sua morada. Não chorava nem falava, mas desenhava com avidez, pequenos carvões tornavam os olhos ainda mais brilhantes e durante horas dedicava-se a escrever estranhos hieróglifos nas paredes, entoando arremedos de canções insanas e grunhidos; emaranhadas, suas escritas confundiam-se e espalhavam-se até alturas inexplicáveis. Os servos temiam-no, desde sua chegada, ratazanas cresciam e infestavam o castelo de maneira anormal, mais de uma vez, fora surpreendido cercado por elas, em guinchos, parecendo comunicar-se com os animais. O primeiro acidente aconteceu com o jovem Thiago, ao levar a comida ao herdeiro – assim chamado as escondidas pelos criados – ao ser surpreendido guinchando com suas mascotes, lhe dirigira um olhar tão feroz que o menino voltara correndo para a cozinha, recusando-se a seguir as ordens para que voltasse. Não se sabe como, mas naquela noite, ardeu em febres, delírios e na manhã seguinte, o corpo sem vida apresentava lacerações como se pequenos e pontiagudos dentes o tivessem ferido. Todo sangue fora retirado do seu corpo franzino.
A cobrança
O rei seguia indiferente, acumulando riquezas e amantes, de suas guerras era sempre o vencedor, um império estava se formando e sob a égide do castigo e da virulência, recebia obediência cega. No entanto, entre as gentes menores do reino, corriam boatos. Outrora havia no reino um rei justo e pacífico, cuja morte inesperada, assim como dos três sucessores imediatos despertara desconfianças, mas nada fora provado e assim Lars Ulrich de Rouam tornara-se o novo e tirano rei. Os murmúrios sobre a súbita ascensão cresciam junto com a insatisfação do povo e dos nobres, estes, manipuladores de segredos, encontraram em um antigo médico da corte caído em desgraça, elementos para vingar-se do novo rei. E assim a historia deste estranho personagem começava a esclarecer-se, à medida que a repugnância em relação a ele crescia.
Em troca de algumas moedas de ouro, entregara este médico um pequeno diário pertencente ao seu falecido pai, servo das sombras que fizera junto ao rei, um pacto demoníaco. Ultor, por toda repugnância que despertara, era de fato um herdeiro, mas não um príncipe herdeiro da terra, era um herdeiro do inferno, era um maldito, o filho do incesto e da decadência, a prova viva da maldade e da ambição, o herdeiro do demônio, cuja primeira vítima fora aquela Angeline morta aos 14 anos, seviciada pelo pai em uma missa negra. Entregue a estranhos e profanos rituais, fora escolhida pelo parricida para abrigar o corpo daquele que ficaria conhecido por todos como o herdeiro. Em troca da pureza de sua filha, tornara-se o novo rei, com poderes grandiosos, não oferecera somente a sua alma e de todos do seu reino para quando o senhor das trevas fosse cobrar o preço, oferecera o ventre de sua única filha para abrigar aquele que seria o primeiro de muitos filhos do demônio em terra, seres tão malignos e bestiais que trariam consigo a doença nas unhas e nos dentes, seres que carregariam consigo todos os odores do inferno e teriam como missão colher as almas para o reino de seu verdadeiro pai, um demônio tão antigo quando os elementos tomara o corpo de Lars Ulrich de Rouam para plantar a semente do mal naquela noite nefasta. E desta semente nascera Ultor, cujos traços degenerados, os dentes apodrecidos e pontiagudos adornados por uma carne flácida e pútrida completavam o quadro terrificante. Horrendo e forte, todas as noites escalava as complexas torres para ter acesso a um pequeno balcão, onde, cercado por ratazanas, observava a vida no reino.
No entanto, quando o segredo foi descoberto, trouxera com ele o preço acertado, de nada adiantara aos inimigos do rei conhecer tão hedionda verdade, pois em dez dias, o horror corporificara-se, lamentos e mortes não poupavam ninguém; a fumaça espalhava o constante odor da morte. Era chegada a hora da cobrança. O fim de Rei Lars Ulrich de Rouam fora inesperado, ao ver a decadência do reino e de seus súditos, lembrou-se da promessa feita ao demônio. Ele então não acolhera e criara o filho da besta, aquele nascido de sua própria filha? Seria mesmo este o fim de seu reinado, não fora ele um servo fiel? Com estes pensamentos, seguiu a procura de Ultor, mas ao entrar na cela úmida, escutou apenas um grunhido; virou e deparou-se com uma enorme ratazana, os olhinhos brilhando no escuro, enfurecido, chutou o animal imundo, mas sentiu nas pernas que algo o roçava, era outra, ainda maior; gritou pelos criados, mas seguindo suas próprias ordens, aqueles se mantinham afastados dali durante a noite. O rei caminhou em direção à porta quando seus pés tropeçaram em outra ratazana, os guinchos aumentaram quando caiu pesadamente ao solo e foi lentamente cercado pelos animais. Exibindo dentes agudos e ferozes, avançaram sobre ele, "os ratos, estão por toda parte, os ratos, os dentes... estão me devorando..." seus gritos percorreram inutilmente os corredores e salas vazias. O reino dourado chegava ao fim ao som de guinchos e dentes mastigando com ferocidade.
Do alto de sua torre, Ultor sorriu, virando levemente o pescoço para aquele que havia sido seu progenitor terreno, depois voltou a observar o reino. As agulhas enegrecidas pela fumaça apontavam para o alto como se pedissem por socorro, mas a fumaça e as trevas cobririam a luz por muito tempo. O novo reino se estabeleceria por séculos.
Fim?
__________________________________________________
LIBERTO
Lino frança Jr.
Lino frança Jr.
Nicodemus era o caçula de dois irmãos. Tinha completado dez anos de idade recentemente. Em sua inocência pueril, não conseguia perceber o rápido esfacelamento da família. O pai, Abdon, era um competente mercador de artefatos de cozinha num grande estabelecimento no centro da cidade, fazia de tudo para trazer conforto para a mulher, Magdala, e os dois filhos. Em sua famosa loja, vendia panelas de cobre, caçarolas de ferro, e uma infinidade de modelos de facas, facões, com lâminas afiadas, pontiagudas, e que eram amoladas com extrema precisão pelo comerciante.
Sua determinação no trabalho não era recompensada num mesmo nível pela ardilosa esposa, que mantinha encontros amorosos com uma série de homens da cidade. A mulher não tinha predileção por raça, condição social ou graça. Deitava-se com todos aqueles que porventura despertassem seus instintos femininos.
Em uma dessas aventuras sexuais, acabou por conhecer Lazarus. Homem misterioso, corpo forte, olhar astuto e idéias perversas. Magdala encantou-se pelo desconhecido varão. Sua virilidade arrebatou-a, e ela desejou com avidez um segundo encontro com o novo amante.
Lazarus, por sua vez, percebeu o interesse desmedido da mulher, e com sagacidade, arquitetou um simplificado plano para auferir algo, mediante as informações fornecidas pela mulher, sobre a boa condição financeira do marido.
Na segunda tarde, tendo a ardente mulher nos braços, Lazarus pôs em prática seu astuto projeto. Com a meticulosidade de um gato manhoso, o homem declarou seu amor pungente e arrebatador pela dama, jurando-lhe devoção e honrarias se esta aceitasse seu desposo. Magdala não pensou uma segunda vez e aceitou com celeridade o pedido do amante. Só havia um único problema no caminho do par: Abdon.
Lazarus não fez rodeios e sugeriu que matassem o marido traído na calada da noite; assim, poderiam assumir os negócios do marido e principalmente sua abastança. A mulher inebriada pelos dotes amorosos do amante, consentiu sem pensar duas vezes.
Naquela mesma noite, o plano foi posto em prática.
Por volta das onze da noite, Magdala, que havia deixado propositalmente a pesada porta de carvalho da entrada da casa apenas encostada, facilitando a entrada do invasor, começou a ouvir os primeiros sinais da chegada de Lazarus. A mulher deixou o quarto onde o marido desavisado repousava num sono profundo e merecido. Aquele que seria o seu último descanso na terra.
Pé ante pé, o amante adentrou ao quarto do casal, e com uma afiada adaga de prata, entregue pela própria concubina, rasgou o pescoço de Abdon, fazendo com o que o sangue quente e viscoso do homem esguichasse com força pelo colchão duro.
Ao sair do quarto, Lazarus reparou na fraca luz da lua que refletia através da janela, pelo chão de pinho lustrado. Por um momento se deteve admirando as formas abstratas que o reflexo sombrio do lado de fora da casa trazia ao corredor escuro. De súbito, percebeu a chegada de outro ser logo a sua frente. A sombra de um homem maior do que ele próprio irrompeu no assoalho brilhante e num impulso rápido, cerrou a adaga ainda ensangüentada no abdômen macio do estranho coberto pela escuridão da noite. A vítima escorreu lentamente pela parede do corredor, da mesma forma que seu sangue vertia de suas entranhas. Quando o corpo sem vida do homem chegou ao chão, provocando um som abafado, Lazarus se deu conta que fora traído pela sombra da lua que refletiu a figura aumentada em tamanho do franzino corpo do filho mais velho de Magdala.
A mãe aproximou-se dos dois com passos curtos e indecisos. Olhou para dentro do quarto e constatou que o plano obtivera êxito, porém, a morte do primogênito poderia causar a derrocada do intento de Lazarus. Para sua própria surpresa, a mulher olhou para o cadáver do filho sem demonstrar nenhuma consternação, nenhum sentimento de perda, nenhuma dor. Pelo contrário. A demonstração de coragem do amante, provocou uma excitação incontrolável na mulher que aproximou-se de Lazarus e beijou sua boca com sofreguidão.
Num ato doentio, tomou a adaga de prata de onde fluía o sangue do marido e do filho maior, e a lambeu nervosamente. Foi quando ouviu soluços de um choro infantil detrás de si, e constatou em seguida, que o caçula, Nicodemus, assistira todo aquele espetáculo macabro.
O fim do filho mais novo viria a ser ainda pior do que o do irmão, que teve na morte rápida, a recompensa por ter sido pego de surpresa na cena do crime.
Nicodemus foi trancafiado na torre mais alta da mansão em estilo vitoriano, comprada a alto custo pelo pai. Do alto da edificação era possível ver os belos castelos góticos e outras construções imponentes. Mas, para o infante, aquela inigualável visão lhe seria ceifada, talvez, até os seus últimos dias.
Numa escuridão suprema e absoluta, Nicodemus passou seus dias, semanas, meses, anos, décadas. O pequeno cômodo de três metros por dois, contíguo com um minúsculo banheiro que não continha nada além de uma rústica bacia para suas necessidades, lhe serviria de morada por uma vida toda da qual o garoto tornou-se homem. Talvez homem...
No início a mãe o alimentava uma vez por dia através de uma pequena portinhola rente ao chão frio e úmido. Normalmente o alimento vinha gelado e sem gosto. Com o passar do tempo, a comida viria parca e ruim. Muitas vezes, Nicodemus era obrigado a sustentar-se com acanhados pedaços de carne apodrecida e pão embolorado. A água, ainda que escassa, era a única coisa digerível com gosto por seu organismo despedaçado.
Quando o estômago ardia de fome, a mente lhe pregava peças, e transformava pombos, ratos, baratas e toda sorte de insetos pegajosos e desavisados, que se aproximavam da portinhola pela qual a mãe lhe provia de comida, em pratos saborosos e quitutes refinados. Os pequenos animais eram devorados vivos e com voracidade brutal.
O tempo passou. Dias frios e úmidos. Escuridão total. Angústia e medo. Revolta e desejo de vingança. Fome e desespero.
Aquela dieta, a base de restos de comida apodrecida e animais rançosos e sórdidos, também o transformara.
Os olhos saltados das órbitas, os dentes deteriorados, a pele pestilenta e escamosa, os ossos tortos e doloridos, a magreza nociva, o sangue insalubre, e o próprio mau cheiro do qual fora obrigado a acostumar-se, o transformara numa coisa. Um monstro. Uma anomalia. Talvez num demônio menor.
E o tempo passou. Nicodemus esqueceu seu nome. Esqueceu quem era e o porquê estava ali naquele túmulo enclausurado. Esqueceu o som das palavras. Esqueceu a imagem do próprio rosto.
Perdeu a esperança.
Eis que um dia, a pesada porta de ferro não resistiu aos anos de ferrugem e putrefação acumulada. Num baque surdo, a tranca do cárcere de Nicodemus cedeu e caiu no chão.
Aquele que há muito tempo fora um garoto assustado de dez anos, agora era um ser de condição degradante e débil. Surpreso com a sensação de liberdade, da qual imaginava jamais teria novamente, aproximou-se da porta e a empurrou devagar, arrastando o corpo pra fora.
A madrugada perdia-se em seus últimos minutos, e logo um novo dia rasgaria o céu com a luminosidade do sol inclemente. O vento gélido e cortante alvejou a pele enegrecida e carcomida de seu rosto desfigurado, como se fosse um enxame de abelhas selvagens.
O horrífico ser não era capaz de mensurar a infinidade de impressões, desejos e perplexidade diante da visão da cidade que pouco se recordava depois de passadas duas décadas de angústia e enclausuramento.
Inexplicavelmente não estava cego apesar de anos mergulhado na escuridão absoluta. Aquilo que seus olhos lhe traziam a mente com dificuldade, não se comparava com a primeira lembrança que dilacerava seus pensamentos. A cena passada e repassada tantas e tantas vezes de sua mãe e o amante assassinando o pai e o irmão, e o trancafiando em uma prisão eterna.
Afinal, percebeu que não havia se esquecido de tudo. E seu ódio fez borbulhar seu sangue e tremer sua carne corroída pelo sofrimento.
Uma risada feroz e insana surgiu como uma erupção incandescente em sua garganta.
Ele agora estava liberto para saciar sua maior sede.
A sede que atendia pelo nome de vingança.
Sua determinação no trabalho não era recompensada num mesmo nível pela ardilosa esposa, que mantinha encontros amorosos com uma série de homens da cidade. A mulher não tinha predileção por raça, condição social ou graça. Deitava-se com todos aqueles que porventura despertassem seus instintos femininos.
Em uma dessas aventuras sexuais, acabou por conhecer Lazarus. Homem misterioso, corpo forte, olhar astuto e idéias perversas. Magdala encantou-se pelo desconhecido varão. Sua virilidade arrebatou-a, e ela desejou com avidez um segundo encontro com o novo amante.
Lazarus, por sua vez, percebeu o interesse desmedido da mulher, e com sagacidade, arquitetou um simplificado plano para auferir algo, mediante as informações fornecidas pela mulher, sobre a boa condição financeira do marido.
Na segunda tarde, tendo a ardente mulher nos braços, Lazarus pôs em prática seu astuto projeto. Com a meticulosidade de um gato manhoso, o homem declarou seu amor pungente e arrebatador pela dama, jurando-lhe devoção e honrarias se esta aceitasse seu desposo. Magdala não pensou uma segunda vez e aceitou com celeridade o pedido do amante. Só havia um único problema no caminho do par: Abdon.
Lazarus não fez rodeios e sugeriu que matassem o marido traído na calada da noite; assim, poderiam assumir os negócios do marido e principalmente sua abastança. A mulher inebriada pelos dotes amorosos do amante, consentiu sem pensar duas vezes.
Naquela mesma noite, o plano foi posto em prática.
Por volta das onze da noite, Magdala, que havia deixado propositalmente a pesada porta de carvalho da entrada da casa apenas encostada, facilitando a entrada do invasor, começou a ouvir os primeiros sinais da chegada de Lazarus. A mulher deixou o quarto onde o marido desavisado repousava num sono profundo e merecido. Aquele que seria o seu último descanso na terra.
Pé ante pé, o amante adentrou ao quarto do casal, e com uma afiada adaga de prata, entregue pela própria concubina, rasgou o pescoço de Abdon, fazendo com o que o sangue quente e viscoso do homem esguichasse com força pelo colchão duro.
Ao sair do quarto, Lazarus reparou na fraca luz da lua que refletia através da janela, pelo chão de pinho lustrado. Por um momento se deteve admirando as formas abstratas que o reflexo sombrio do lado de fora da casa trazia ao corredor escuro. De súbito, percebeu a chegada de outro ser logo a sua frente. A sombra de um homem maior do que ele próprio irrompeu no assoalho brilhante e num impulso rápido, cerrou a adaga ainda ensangüentada no abdômen macio do estranho coberto pela escuridão da noite. A vítima escorreu lentamente pela parede do corredor, da mesma forma que seu sangue vertia de suas entranhas. Quando o corpo sem vida do homem chegou ao chão, provocando um som abafado, Lazarus se deu conta que fora traído pela sombra da lua que refletiu a figura aumentada em tamanho do franzino corpo do filho mais velho de Magdala.
A mãe aproximou-se dos dois com passos curtos e indecisos. Olhou para dentro do quarto e constatou que o plano obtivera êxito, porém, a morte do primogênito poderia causar a derrocada do intento de Lazarus. Para sua própria surpresa, a mulher olhou para o cadáver do filho sem demonstrar nenhuma consternação, nenhum sentimento de perda, nenhuma dor. Pelo contrário. A demonstração de coragem do amante, provocou uma excitação incontrolável na mulher que aproximou-se de Lazarus e beijou sua boca com sofreguidão.
Num ato doentio, tomou a adaga de prata de onde fluía o sangue do marido e do filho maior, e a lambeu nervosamente. Foi quando ouviu soluços de um choro infantil detrás de si, e constatou em seguida, que o caçula, Nicodemus, assistira todo aquele espetáculo macabro.
O fim do filho mais novo viria a ser ainda pior do que o do irmão, que teve na morte rápida, a recompensa por ter sido pego de surpresa na cena do crime.
Nicodemus foi trancafiado na torre mais alta da mansão em estilo vitoriano, comprada a alto custo pelo pai. Do alto da edificação era possível ver os belos castelos góticos e outras construções imponentes. Mas, para o infante, aquela inigualável visão lhe seria ceifada, talvez, até os seus últimos dias.
Numa escuridão suprema e absoluta, Nicodemus passou seus dias, semanas, meses, anos, décadas. O pequeno cômodo de três metros por dois, contíguo com um minúsculo banheiro que não continha nada além de uma rústica bacia para suas necessidades, lhe serviria de morada por uma vida toda da qual o garoto tornou-se homem. Talvez homem...
No início a mãe o alimentava uma vez por dia através de uma pequena portinhola rente ao chão frio e úmido. Normalmente o alimento vinha gelado e sem gosto. Com o passar do tempo, a comida viria parca e ruim. Muitas vezes, Nicodemus era obrigado a sustentar-se com acanhados pedaços de carne apodrecida e pão embolorado. A água, ainda que escassa, era a única coisa digerível com gosto por seu organismo despedaçado.
Quando o estômago ardia de fome, a mente lhe pregava peças, e transformava pombos, ratos, baratas e toda sorte de insetos pegajosos e desavisados, que se aproximavam da portinhola pela qual a mãe lhe provia de comida, em pratos saborosos e quitutes refinados. Os pequenos animais eram devorados vivos e com voracidade brutal.
O tempo passou. Dias frios e úmidos. Escuridão total. Angústia e medo. Revolta e desejo de vingança. Fome e desespero.
Aquela dieta, a base de restos de comida apodrecida e animais rançosos e sórdidos, também o transformara.
Os olhos saltados das órbitas, os dentes deteriorados, a pele pestilenta e escamosa, os ossos tortos e doloridos, a magreza nociva, o sangue insalubre, e o próprio mau cheiro do qual fora obrigado a acostumar-se, o transformara numa coisa. Um monstro. Uma anomalia. Talvez num demônio menor.
E o tempo passou. Nicodemus esqueceu seu nome. Esqueceu quem era e o porquê estava ali naquele túmulo enclausurado. Esqueceu o som das palavras. Esqueceu a imagem do próprio rosto.
Perdeu a esperança.
Eis que um dia, a pesada porta de ferro não resistiu aos anos de ferrugem e putrefação acumulada. Num baque surdo, a tranca do cárcere de Nicodemus cedeu e caiu no chão.
Aquele que há muito tempo fora um garoto assustado de dez anos, agora era um ser de condição degradante e débil. Surpreso com a sensação de liberdade, da qual imaginava jamais teria novamente, aproximou-se da porta e a empurrou devagar, arrastando o corpo pra fora.
A madrugada perdia-se em seus últimos minutos, e logo um novo dia rasgaria o céu com a luminosidade do sol inclemente. O vento gélido e cortante alvejou a pele enegrecida e carcomida de seu rosto desfigurado, como se fosse um enxame de abelhas selvagens.
O horrífico ser não era capaz de mensurar a infinidade de impressões, desejos e perplexidade diante da visão da cidade que pouco se recordava depois de passadas duas décadas de angústia e enclausuramento.
Inexplicavelmente não estava cego apesar de anos mergulhado na escuridão absoluta. Aquilo que seus olhos lhe traziam a mente com dificuldade, não se comparava com a primeira lembrança que dilacerava seus pensamentos. A cena passada e repassada tantas e tantas vezes de sua mãe e o amante assassinando o pai e o irmão, e o trancafiando em uma prisão eterna.
Afinal, percebeu que não havia se esquecido de tudo. E seu ódio fez borbulhar seu sangue e tremer sua carne corroída pelo sofrimento.
Uma risada feroz e insana surgiu como uma erupção incandescente em sua garganta.
Ele agora estava liberto para saciar sua maior sede.
A sede que atendia pelo nome de vingança.
Saudações!
ResponderExcluirAdorei os contos, adoro esta linha de literatura. Há tempos escrevi um intitulado "O Presente" e o publiquei num site de contos. Fui execrada, até de de ser psicopata fui acusada. Foi um verdadeiro fracasso.
Dois anos depois, um amigo português me convidou para publicá-lo novamente, desta vez em Portugal e na Espanha. Por lá, adoraram.
Bom, de tudo que escrevi até hj, "O Presente" foi o que mais gostei. Gostaria imenso de ve-lo num site mais arrojado, participando de concursos, mais para ver desta vez como será sua aceitação. Podem me dizer que caminho devo seguir para publicá-lo?
Ficarei imensamente grata se me responderem.
{{{{{{{{{abraço afetuoso}}}}}}}}}